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Mostrando postagens de janeiro, 2018

Soneto de Agosto

Tu me levaste, eu fui... Na treva, ousados Amamos, vagamente surpreendidos Pelo ardor com que estávamos unidos Nós que andávamos sempre separados. Espantei-me, confesso-te, dos brados Com que enchi teus patéticos ouvidos E achei rude o calor dos teus gemidos Eu que sempre os julgara desolados. Só assim arrancara a linha inútil Da tua eterna túnica inconsútil... E para a glória do teu ser mais franco Quisera que te vissem como eu via Depois, à luz da lâmpada macia O púbis negro sobre o corpo branco. Vinicius de Moraes

Difícil fotografar o silêncio

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Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada a minha aldeia estava morta. Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a ‘ Nuvem de calça’ . Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakowski – seu criador. Fotografei a ‘ Nuvem

Ruína

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Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro (O olho do monge estava perto de ser um canto). Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado. Manoel de Barros

O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina. Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis. Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas Como sejam: Uma pequena manivela para pegar no sono. Um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão. Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias automobilísticas pelo Platinado de Mandioca. Fui aclamado de idiota pela maioria das autoridades na entrega do prêmio. Pelo que fiquei um tanto soberbo. E a glória entronizou-se para sempre em minha existência. Manoel de Barros

Um Homem e o seu Carnaval

Deus me abandonou no meio da orgia entre uma baiana e uma egípcia. Estou perdido. Sem olhos, sem boca sem dimensão. As fitas, as cores, os barulhos passam por mim de raspão. Pobre poesia. O pandeiro bate É dentro do peito mas ninguém percebe. Estou lívido, gago. Eternas namoradas riem para mim demonstrando os corpos, os dentes. Impossível perdoá-las, sequer esquecê-las. Deus me abandonou no meio do rio. Estou me afogando peixes sulfúreos ondas de éter curvas curvas curvas bandeiras de préstitos pneus silenciosos grandes abraços largos espaços eternamente. Carlos Drummond de Andrade (do livro Brejo das Almas, 1934)

Soneto da quarta-feria de cinzas

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Por seres quem me foste, grave e pura  Em tão doce surpresa conquistada  Por seres uma branca criatura  De uma brancura de manhã raiada  Por seres de uma rara formosura  Malgrado a vida dura e atormentada  Por seres mais que a simples aventura  E menos que a constante namorada  Porque te vi nascer de mim sozinha  Como a noturna flor desabrochada  A uma fala de amor, talvez perjura  Por não te possuir, tendo-te minha  Por só quereres tudo, e eu dar-te nada  Hei de lembrar-te sempre com ternura. Rio, 1941 Vinicius de Morais